Transição Energética | Reinventar a Rede Elétrica

CATÓLICA-LISBON
Segunda, Novembro 27, 2023 - 10:45

A rede elétrica foi considerada o “maior fator limitador” para o aumento da quota de mercado das energias renováveis e é frequentemente associada a visões céticas sobre uma transição energética acelerada. A razão é simples. Até 2050, pede-se às redes eléctricas que tripliquem a quantidade de energia que transportam, se adaptem a um novo paradigma de produção e consumo de electricidade e se tornem digitais.

O primeiro desafio é o tempo. Três décadas é pouco para um setor em que a capacidade cresceu a uma velocidade relativamente lenta, acompanhando cadeias de abastecimento de produção complexas, dispendiosas e personalizadas, e em que os pedidos de ligação eram geridos numa base reativa first-come-first-serve. É necessário aumentar a capacidade de produção, nomeadamente de equipamentos, para servir necessidades concentradas no tempo. Isto choca com um perfil de investimento e de risco da industria focado numa linha estável de procura de longo prazo. Os governos e os reguladores também se sentem inibidos em antecipar investimentos para preparar a rede para o novo paradigma e assim acelerar as interconexões da nova geração e consumo, dada a sua responsabilidade e foco em manter baixos os custos para o consumidor. Há também incerteza se todos os recursos necessários estarão disponíveis a um ritmo acelerado, tais como os materiais, nomeadamente cobre e o capital para financiar investimentos de 1T$ por ano.

O segundo desafio é o volume de energia a ser transmitida e distribuída. A electrificação da mobilidade rodoviária, da indústria e da climatização de edifícios, juntamente com a necessidade de alimentar electrolisadores para produzir hidrogénio, poderia triplicar a procura de electricidade até 2050 e adicionar milhões de pontos de consumo à rede existente. A estabilidade e a fiabilidade do fornecimento de energia eléctrica são essenciais, nomeadamente a capacidade de gerir picos que terão uma natureza e forma diferentes das observadas hoje. Serão necessários investimentos massivos para responder a estes desafios, 40% dos quais serão feitos em novo hardware e software e 60% na atualização e reforço dos sistemas existentes.

O terceiro desafio é a configuração da rede. Este é provavelmente o mais complexo. Há uma necessidade de alterar a forma como a rede eléctrica se liga aos activos de produção e de consumo, tanto em termos do seu desenho como da tecnologia utilizada.

O desenho da rede eléctrica precisa de evoluir de uma rede essencialmente regional, que liga uma multiplicidade de consumidores, grandes e pequenos, a um número relativamente baixo de grandes centrais de produção, centrais estas localizadas em locais estratégicos de acesso a cadeias globais de fornecimento de combustíveis fosséis. O novo desenho precisa de ser inter-regional, conectando um maior número de consumidores, muitas vezes também produtores, a um elevado e variado conjunto de ativos de geração. Estes activos de geração incluem desde grandes projectos co-localizados em áreas remotas, ricas em energia eólica e solar, em terra ou no mar, a paineis solares colocados em telhados de edifícios residenciais para autoconsumo em pequena escala.

A crescente importância das linhas de transporte de longa distância é uma consequência óbvia, e vários grandes projectos estão em curso ou anunciados. São exemplo disso a ligação entre Marrocos e o Reino Unido e os corredores eléctricos para o Báltico, o Mar do Norte e o Mediterrâneo. Os investimentos nestas linhas aumentaram significativamente. Entre 2015 e 2020 o investimento médio anual rondou os 3 mil milhões de dólares, aumentando para 11 mil milhões de dólares em 2022 e prevendo-se que 2023 termine com um valor de 20 mil milhões de dólares. Outra consequência óbvia é o crescimento da instalação de cabos submarinos que ligam um parque crescente de centrais eólicas offshore. Na medida em que tanto as infra-estruturas de longa distância como as submarinas dependem de competências muito especializadas, a sua implementação em grande escala representará um grande desafio.

A tecnologia utilizada na rede elétrica também precisa de evoluir de uma versão adaptada às grandes centrais síncronas rotativas e a um transporte regional de eletricidade, para uma versão adaptada a ativos de geração intermitente e a soluções de transporte de longa distância. As soluções tecnológicas necessárias estão hoje disponíveis mas exigem investimento. No que diz respeito aos ativos de geração é necessário modernizar os atuais inversores que colocam a energia dos paneis solares, turbinas eólicas e baterias na rede elétrica. Hoje, estes são maioritariamente seguidores da rede, o que significa que amplificam os desequilíbrios e criam a necessidade de capacidade rotativa improdutiva adicional. No futuro deverão ser formadores de rede assegurando a estabilidade pretendida. No que diz respeito ao transporte, a tecnologia de Corrente Contínua em Alta Tensão (HVDC) com melhorias trazidas pelo uso do Transistor Bipolar de Porta Isolada (IGBT) deve ser considerada como opção para ampliar o potencial e a eficiência da transmissão e permitir a interconexão de áreas com diferentes ativos de geração.

O quarto desafio é a digitalização. É fundamental aproveitar ao máximo os ativos e para otimizar o desempenho, a confiabilidade e a resposta a interrupções. Os contadores inteligentes começaram a ser amplamente implementados nas redes de transmissão e distribuição, embora ainda haja muito a fazer. Estes fornecem informações granulares em tempo real sobre os fluxos de energia através da rede e até ao ponto de consumo. Algoritmos executados nesses dados geram instruções para subestações, alimentadores, linhas e transformadores automatizados para otimização de fluxo. Os Sistemas de Gestão de Energia Distribuída (DERMS) oferecem a possibilidade de melhorar a utilização e gestão de recursos distribuídos e flexíveis, tais como centrais de energias renováveis de pequena escala, pontos de carregamento de veículos elétricos e sistemas de armazenamento de energia de baterias. Um grande ecossistema de start-ups está a inovar no domínio das tecnologias digitais aplicadas à rede elétrica em temas que vão desde a prevenção de incêndios florestais até à cibersegurança.

A rede eléctrica actual é uma maravilha notável de engenharia e coordenação que enfrenta um momento decisivo. A fascinante possibilidade de transmissão de eletricidade sem fios, uma vez imaginada por Nikola Tesla, permanece no domínio da exploração teórica, obrigando-nos a enfrentar os desafios de uma rede de postes, parafusos e fios com liderança visionária e estreita colaboração.

Teresa Abecassis, Executive in Residence na CATÓLICA-LISBON