Depois do desastroso início de projecto Libra, no ano passado, o facebook veio tentar emendar a mão, corrigindo o seu white paper no passado dia 16, e chamando-lhe agora “payment system”.

Pois parece que andou a falar com os reguladores, apresentou até um relatório do G7 favorável a stable coins, e acabou a propor recentemente uma espécie de sistema de pagamentos suportado por uma espécie de blockChain e com um cabaz de stable coins, incluindo a sua própria criptomoeda, a Libra. Tudo porque há muitas pessoas no mundo sem capacidade para movimentar o seu dinheiro, numa altura onde a comunicação liberalizada de dados multimédia passou a ser a norma para tudo, exceto para os pagamentos. Tudo muito meritório. Ler o white paper da Libra é acreditar que é tudo sem fins lucrativos, tudo muito seguro, e para nos ajudar a todos.

A verdade é que não se percebe porque é que o facebook está há cinco anos a complicar o que é simples. Eu explico.

Há 4 anos, o facebook obteve uma licença para operar sistemas de pagamentos no espaço SEPA, a partir da Irlanda. Na mesma altura, tinha metido na cabeça que o seu Messenger seria a forma de passar do simples portal de consumo de conteúdos que todos conhecemos, para a comunicação móvel em tempo real, com a vantagem de poder ganhar uma comissão algures. Não funcionou. Felizmente, como teve o bom senso de comprar o whatsapp, em Dezembro de 2018 avançou, a partir da Índia, com o “roll out” de uma funcionalidade chamada “whatsapp pay”, que é uma espécie de uma wallet. Ficou pelo caminho. E em Abril de 2019 anunciou a Libra com pompa e circunstância, com o apoio da Visa e da Paypal entre quase três dezenas de outras empresas. Mas nem todos foram na cantiga na altura. Depois, lá para Setembro do mesmo ano, a Visa e a Paypal abandonaram o projecto…

Quatro anos a complicar o que é simples é uma eternidade, até porque empresas como a Revolut ou o N26 aproveitaram para oferecer wallets em várias moedas e proporcionam pagamentos internacionais instantâneos grátis, e da forma mais simples do mundo. A China, em particular, já faz isso à escala nacional e também em alguns países asiáticos num ecossistema que cruza o sistema bancário, por oposição às soluções ocidentais onde as Revoluts da vida têm de lutar para montar as suas próprias redes. O mesmo se pode dizer os m-pesa em África. Portanto, a pergunta a fazer ao facebook é, porque não faz o mesmo, ou, pelo menos, porque não começa simples?

Mas há um lado bom. A tecnologia por detrás da Libra é interessante. A utilização da criptografia e uma estrutura tipo blockChain (na verdade é uma blockTree) permite criar uma plataforma de funcionamento independente e confiável. Não sendo uma blockChain tradicional, a sua estrutura de dados em árvore, promete ser particularmente bem-adaptada à gestão da informação financeira. Aliás, a proposta técnica base da Libra é muito semelhante ao que Ripplenet e R3 já têm em produção há muito tempo. Mas a principal inovação da Libra vem da sua linguagem, chamada Move. Em vez de permitir a programação de SmartContracts genéricos, como fazem a maioria das blockChains, optou-se por uma linguagem específica para ativos financeiros. Para além de ser mais eficiente, permite uma segurança na programação e exploração do código bem acima daquilo que as linguagens mais flexíveis (chamadas turing-completas) alguma vez conseguirão, porque o Move verifica a validade das transações dos ativos financeiros em tempo de execução. A discussão deste tema está para além do que pode ser discutido num pequeno artigo de opinião, mas convém referir que as principais fragilidades das tecnologias na área da blockChain vêm precisamente da programação dos SmartContracts, que o Move ultrapassa em grande medida. As virtudes relativamente à segurança dos ativos financeiros são inegáveis. Em suma, a Libra usa uma infraestrutura que que herda o que de melhor se está a fazer na área (apesar de 1000 transações por segundo não impressionarem de todo) e a explicação convence. Em cima disso, optou por uma linguagem bastante potente que vai buscar segurança às linguagens funcionais, e sem cair na inflexibilidade associada às mesmas.

Será que o lado bom da tecnologia é suficiente para justificar a nova proposta?

Paulo Cardoso do Amaral, Professor da Católica Lisbon School of Business & Economics.