A administração americana escolheu uma terapia de choque em múltiplas frentes, convicta de que é tão forte que todos cederão à sua pressão. Pode estar enganada, mas já semeou confusão geoestratégica e económica em meio mundo. Acima de tudo nos seus aliados tradicionais da Nato, União Europeia e Nafta
A economia dos EUA pode entrar em recessão devido às políticas económicas da administração americana, como seja os cortes e congelamento de despesa pública ou a introdução "ad hoc" de tarifas.
O alerta mais recente vem de um indicador instantâneo elaborado pelo Atlanta Fed que teve uma queda invulgarmente rápida no início de março.
Estes tipos de indicadores são voláteis e nem sempre os sinais de recessão que transmitem se materializam na prática. Neste momento, há uma curiosidade natural sobre se a economia americana resistirá ao tratamento de choque e a tanta turbulência.
A dívida pública dos EUA atingiu níveis históricos, impulsionada pelos gastos relacionados com a pandemia de covid-19 e por outros fatores. Se fosse outro país estaria sujeito, provavelmente, a um programa de ajustamento económico financeiro sob a égide do Fundo Monetário Internacional (FMI). O desempenho da economia americana no pós-covid tem sido muito melhor do que das outras economias desenvolvidas. Porém, resulta em parte dos enormes estímulos fiscais e monetários do período 2020 a 2022. Existe, nesse sentido, um elemento ilusório.
Um programa de ajustamento é diferente do trabalho que o Department of Government Efficiency (DOGE) tem vindo a fazer. Algumas das despesas efetuadas pela USAID (agência americana de ajuda ao desenvolvimento internacional) ou pela Segurança Social podem ter sido ideologicamente motivadas e fraudulentas. O que se descobriu tem já uma certa gravidade. Mas não justifica, na minha opinião, despedimentos em massa de funcionários públicos ou interrupção imediata de programas em curso.
A boa política económica exigiria uma programação e aprovação das principais medidas e a explicação de como os objetivos de finanças públicas irão ser atingidos no médio prazo. Nada disso foi articulado. A combinação de congelamento de programas públicos com a promessa de enormes descidas de impostos é particularmente desadequada.
De igual modo a turbulência em torno do anúncio, entrada em vigor e suspensão, de vários tipos de tarifas gera desconfiança nas famílias e nos investidores.
Os primeiros dois meses da administração Trump são um espetáculo difícil de compreender. Mas é difícil que não tenha consequências negativas na atividade económica.
É nesse sentido que os sinais de recessão são credíveis. Trump poderia tentar responsabilizar a administração anterior pelo nível elevado da dívida pública e do défice. Mas pelo menos a atividade económica e o desemprego estavam relativamente saudáveis.
A rutura com o passado é tão pronunciada que a eventual ocorrência de uma recessão será mesmo o resultado da incerteza e imprevisibilidade do comportamento desta administração.
O trabalho do DOGE deveria dar origem a um programa de ajustamento económico financeiro aprovado pelo Congresso. E não uma caça às bruxas aos adversários de Trump na administração pública. Mesmo que esta seja atualmente excessivamente inclinada a favorecer os democratas.
O combate à inflação tem sido a principal prioridade da Reserva Federal (Fed), o banco central dos EUA. O papel da Fed não é combater a política económica da administração americana. Mas como há um risco de que as decisões discricionárias da administração provoquem uma recessão, a Fed fica algo desorientada no que deve fazer e como explicar a sua política.
Até haver dados concretos sobre os estragos já causados, a Fed pode optar por esperar por dados que reflitam o novo cenário.
As tensões geopolíticas também contribuem para a incerteza económica. A forma pouco amistosa como Zelensky foi tratado na casa branca por Trump e o seu vice-presidente é quase equivalente a mudar de lado na invasão da Ucrânia pela Rússia. Com a agravante de que neste caso corresponde a mudar de lado em favor de quem violou a ordem internacional criada após a Segunda Guerra Mundial.
Este comportamento da legitima administração americana coloca os seus aliados tradicionais na Europa, na América e na Ásia numa situação estrategicamente impossível. Devem assumir que os Estados Unidos são agora um rival ou mesmo um inimigo? Ou pelo contrário, devem esperar 46 meses até que um novo Presidente traga a América para o seu papel tradicional na cena internacional?
Por isso será muito difícil à União Europeia formular políticas de defesa coerentes. Para gastar dinheiro em defesa a nível europeu é preciso um conceito estratégico e uma ideia das ameaças para as quais é necessário organizar recursos. A turbulência vinda da América não permite pensar no problema com a ponderação necessária. O mundo livre está outra vez sem líder.
A administração americana escolheu uma terapia de choque em múltiplas frentes, convicta de que é tão forte que todos cederão à sua pressão. Pode estar enganada, mas já semeou confusão geoestratégica e económica em meio mundo. Acima de tudo nos seus aliados tradicionais da Nato, União Europeia e Nafta. Se houver uma recessão na América provocada pela administração Trump será a primeira vez que um governo o faz de propósito.
João Borges de Assunção, Professor da CATÓLICA-LISBON