Mesmo que o PS venha a mudar de campo outra vez, o que eu gostaria que acontecesse, nada será como antes. O compromisso histórico com a democracia liberal foi colocado na gaveta.
Os próximos tempos vão ser muito difíceis para as pessoas moderadas em Portugal.
O Governo e os seus aliados acreditam que é a sua política que está a produzir bons resultados na frente económica sem prejudicar demasiado a sustentabilidade das finanças públicas. Interpretam, assim, os bons dados económicos como uma legitimação da fórmula governativa que escolheram. E da qualidade das decisões que tomaram no plano orçamental: em particular os aumentos dos funcionários públicos, as cativações orçamentais, e os aumentos dos impostos indiretos para muitos, mas com benesses para os restaurantes.
É difícil desconstruir com evidência empírica estas crenças. E por isso não o vou tentar fazer.
Quem, como eu, considera que a qualidade da nossa governação está aquém do necessário sente-se tentado a recorrer ao humor ou a algum extremismo argumentativo. Reconheço que para quem está com frequência no espaço público esse é o caminho mais viável. Desconversar, "tweetar" e ironizar protege-nos de sermos obrigados a defender, em simultâneo, que estamos a ser mal governados e que o desempenho económico é positivo. A título de mero exemplo: o atual Presidente americano é ridicularizado quando se assume como o obreiro do bom momento dos vários indicadores da economia americana, por muitas das pessoas que cometem a mesma falácia lógica com o Governo português.
A diferença, significativa, é que o Governo americano é avaliado e analisado pela imprensa de todo o mundo. Há assim, pluralidade de opiniões racionais. Como também há pluralidade de opiniões extremadas e humorísticas. A inexistência de um naipe de análise independente tão profundo para a governação em Portugal limita o palco da avaliação aos apoiantes ou críticos do Governo.
Os apoiantes do Governo fizeram uma escolha estratégica em novembro de 2015 que mudou estruturalmente a política portuguesa. Deixou de haver uma divisão entre os partidos que defendiam a democracia liberal (o chamado arco da governação) e os demais. E passou a haver uma divisão entre os partidos de esquerda e os que não são de esquerda. Essa clivagem é hoje o critério de associação dos atores políticos. E isso mina a confiança para-constitucional que tinha sido conquistada em 1976 entre os principais partidos políticos.
Os temas consensuais anteriores, como a integração na União Europeia, a proteção estratégica no seio da Nato, a defesa da democracia liberal, são hoje menos importantes para os apoiantes do nosso Governo do que a divisão "esquerda", "não esquerda" (ou "direita", como o Governo e os seus apoiantes usam como qualificativo desqualificante).
As mudanças estratégicas tendem a ser duradouras, mas também imprevisíveis. Os apoiantes e dirigentes do PS mudaram, com as suas decisões de novembro de 2015, a sua visão das prioridades estratégicas de Portugal e todos temos de respeitar isso. Ainda é cedo para compreender todas as consequências dessas decisões - além da óbvia durabilidade, e mesmo popularidade, do Governo.
A festa e o entusiasmo dos apoiantes do Governo coexistem com a desilusão e a desmotivação de muitos portugueses que sentem um profundo mal-estar com a aparente discrepância entre os resultados eleitorais de 2015 e a composição do Governo à luz da tradição portuguesa. Esta divisão de sentimentos poderá manter-se durante muitos anos.
Mesmo que o PS venha a mudar de campo outra vez, o que eu gostaria que acontecesse, nada será como antes. O compromisso histórico com a democracia liberal foi colocado na gaveta. E ficámos a saber que esse deixou de ser um princípio fundamental, pelo menos no plano das alianças.
A nossa estabilidade governativa esconde uma clivagem com uma natureza nova. E que torna muito difícil a vida dos nossos representantes políticos, particularmente dos moderados. Curiosamente, tal como noutros países, quanto mais bem-sucedida eleitoralmente for a solução atual mais a clivagem se acentuará. E o campo moderado deixará de ter voz ou representação política.
Espero apenas que a recuperação da economia continue a bom ritmo e imune às transformações da política nacional. Os eleitores tratarão do resto em tempo oportuno. Já que eu acredito que não há problema político que a democracia liberal representativa não consiga resolver.
João Borges de Assunção, Associate Professor da CATÓLICA-LISBON.