A modernização das empresas agrícolas nacionais e a chegada de fundos de investimento internacionais revolucionaram o quadro de exigências dos profissionais do sector.

Como herdeiro de uma família geneticamente ligada à agricultura, um dos filhos de João Coimbra seguiu os passos do pai e foi estudar agronomia. Se o mundo rural mantivesse a ordem natural das coisas, estaria muito provavelmente hoje a trabalhar na exploração ao lado do pai. Mas como se especializou na análise de dados, “foi logo recrutado para áreas que não têm que ver com o agro-negócio”, diz João Coimbra.

Actualmente, trabalha num dos fundos de investimento internacionais que nos últimos anos aterraram em Portugal à procura de terrenos extensos e com água. E quem trabalha com João Coimbra na modelar Quinta da Cholda, no Ribatejo, onde o milho atinge produtividades duas vezes superiores às dos Estados Unidos e quatro vezes maiores do que na Ucrânia, é um outro seu filho que se licenciou em Gestão.

O caso da família Coimbra e da Quinta da Cholda é, por isso, um bom ponto de partida para se perceber que há uma vanguarda na agricultura portuguesa que não precisa apenas dos saberes da agronomia clássica. Exige tratamento de dados, o uso da tecnologia digital, dos métodos de valoração económica, de marketing, saberes sobre comportamentos dos consumidores, conhecimento sobre as políticas públicas ou sobre a valoração dos serviços dos ecossistemas. Nessa vanguarda há, claro está, agrónomos, mas também gestores, engenheiros de outros ramos, ou juristas.

Naturalmente, entre os programas de formação de executivos de escolas de universidades como a CATÓLICA-LISBON, a Nova SBE, a Porto Business School ou o ISEG começaram a aparecer programas de formação executiva para estes quadros. O mais antigo, do ISEG, acumulou oito edições, até ficar congelado com a pandemia , “estamos a ter muita pressão para o activarmos”, diz José Veríssimo, que foi responsável pelo programa de formação e é professor de Marketing.

No programa da Nova SBE, Antonieta Cunha e Sá é responsável pela área da valoração dos serviços do ecossistema, onde encontra “uma nova forma de encarar a economia”, mais focada na sustentabilidade. A Porto Business School fez formações ocasionais para gestores da fileira do vinho e a Católica tem um programa intensivo de 36 horas “com vários módulos onde se cruzam docentes e uma série de especialistas sobre as diferentes áreas”, de acordo com Filipe Ravara, que coordena a formação.

Como proclama uma campanha dirigida pela consultora Consulai que é financiada pela União Europeia, “a agricultura evoluiu, só você é que não viu”. Nas grandes empresas do sector produtivo, na agro-indústria, nas consultoras ou na banca, o interesse pelo agro-negócio progrediu ao ritmo da competitividade, da inovação ou da internacionalização.

“Na agricultura comercial e tecnológica, o que hoje é mais necessário não são os saberes do velho agrónomo, mas de quadros que, por exemplo, sejam capazes de fazer modelos de previsão ou de estatística”, diz João Coimbra. Para estar à frente de uma área onde cresce milho, “têm de ter capacidade de trabalhar com sistemas de sensorização que não são muito diferentes dos que são usados, por exemplo, num hospital”, diz João Coimbra.

A abertura da agricultura ao mundo digital e tecnológico acabou assim por transformar o perfil das empresas nacionais. A produção de cogumelos na empresa Varandas de Sousa, em Mirandela, a de tomate para a indústria no grupo Sugal da família Ortigão Costa ou a do azeite na Sovena exigem níveis de especialização transversais.

É preciso usar a informática ou sensores para determinar as necessidades de água ou de nutrientes nesta ou na outra área da exploração , uma parte do que se designa por agricultura de precisão. Como é preciso ter conhecimentos de marketing, de mercados, de sustentabilidade, de financiamentos, de apoios possíveis na vastidão da Política Agrícola Comum da União Europeia.

Já não são apenas os espanhóis, que tiveram um forte contributo no avanço do olival regado pelo Alqueva, a trazer capital e inovação para a agricultura nacional. Hoje em dia há fundos de brasileiros ou norte-americanos que apostam no amendoal (na imagem), nos frutos vermelhos, nas hortícolas.

“Tenho aquela perspectiva anglo-saxónica que considera que a faculdade é um preâmbulo que nos abre a cabeça”, diz Clara Moura Guedes, gestora da Monte Pasto. “Temos licenciados de áreas técnicas, mas o fundamental é haver capacidade de diferenciação e de inovação, que é o que nos gera valor.”

Uma empresa agrícola avançada exige o mesmo grau de sofisticação de uma empresa, por exemplo, industrial. E, em consequência, o mesmo perfil de quadros altamente qualificados. O progresso da formação executiva para o agro-negócio é uma resposta a esta mudança.
“A faculdade é um preâmbulo que nos abre a cabeça”

Veja-se o caso da Monte Pasto, uma empresa de criação de gado e de produção de carne no Baixo Alentejo que, no pleno da sua produção, pode gerir um efectivo de 12 mil bovinos. A empresa, que integrava o universo do Grupo Espírito Santo, estava falida quando o banco entrou no seu estertor. Quando foi nomeada para a recuperar, a gestora Clara Moura Guedes considerava que estava a partir não do zero, mas “do menos 40”. Ela pouco ou nada sabia de veterinária ou de alimentação animal, mas tinha experiência de gestão em multinacionais de grande consumo. Numa década, deu a volta à empresa. A Monte Pasto, que, entretanto, foi adquirida por um grupo com sede em Macau, alargou a área da sua exploração, exporta 95% da sua produção e gere um volume de negócios de 30 milhões de euros por ano.

“As universidades estão a ficar ultrapassadas. Ainda estão na era do tractor, não da do drone”, nota o académico Fontaínhas Fernandes, ex-reitor da UTAD. “Questões novas como o sequestro de carbono no solo precisam de entrar na primeira linha das suas preocupações.”

O segredo? A aposta nos recursos humanos. “Na equipa, 60% das pessoas são licenciadas”, diz Clara Moura Guedes. E não apenas em Veterinária ou em Agronomia. “Tenho aquela perspectiva anglo-saxónica que considera que a faculdade é um preâmbulo que nos abre a cabeça. Temos licenciados de áreas técnicas, mas o fundamental é haver capacidade de diferenciação e de inovação, que é o que nos gera valor”, diz a gestora. Com base nesse princípio, a Monte Pasto começou a renovar a sua equipa há dez anos e, hoje, os seus quadros mais seniores são jovens na casa dos 30 anos. “Isto mudou, e até nas empresas familiares da agricultura começa a haver mais sensibilidade para a importância da qualificação”, diz a gestora.

A mudança é tão evidente que, num curto espaço de tempo, o país começou a acusar a falta de licenciados nas áreas técnicas da agricultura e da floresta. Se na gestão ou em segmentos da agricultura de precisão o sector tem um campo de recrutamento mais amplo, nas áreas das outras engenharias, da gestão ou do direito, há saberes básicos que continuam a ser considerados essenciais , até a formação de executivos considera módulos dedicados a estas ferramentas básicas da ciência agronómica, para os quais há carência de quadros.

“Em Março fizemos, na Universidade de Trás-os-Montes (UTAD), uma convenção que reuniu a academia e as empresas do sector, e ficou claro que havia carência de recursos nesta área”, nota Fontaínhas Fernandes, académico e ex-reitor da UTAD.

É um pouco na sequência dessa constatação que a agronomia e a silvicultura ganharam um novo estatuto nas prioridades da formação numa recente revisão do Programa de Recuperação e Resiliência, o PRR, ao lado das ciências da saúde ou da formação ao longo da vida. “É importante ir às escolas e motivar os mais jovens para os cursos de agronomia e de silvicultura”, diz Fontaínhas Fernandes. Há mil quadros das direcções regionais da Agricultura que se vão aposentar nos próximos tempos, as empresas mais qualificadas da agricultura intensiva precisam de recursos humanos qualificados e, apesar do aumento da procura, há cursos nestas áreas nas universidades que continuam com pouca procura.

Para estar à frente de uma área onde cresce milho, importa “ter capacidade de trabalhar com sistemas de sensorização que não são muito diferentes dos que são usados, por exemplo, num hospital”, diz João Coimbra, da Quinta da Cholda, na Golegã.

Há neste desfasamento vários preconceitos. Com excepção da enologia e da veterinária, as outras áreas da agronomia “têm um escasso estatuto social”, diz Fontaínhas. No caso da engenharia florestal, o caso é ainda mais grave. “Ninguém quer ir trabalhar para uma indústria da desgraça”, nota o académico. Mas há também um problema na própria imagem e na organização dos cursos de agronomia. “As universidades estão a ficar ultrapassadas. Ainda estão na era do tractor, não da do drone. A agricultura 4.0, o uso de imagens espaciais ou questões novas como o sequestro de carbono no solo precisam de entrar na primeira linha das suas preocupações”, diz Fontaínhas Fernandes.

Como diz José Veríssimo, “o sector precisa de mais gestão do que de técnica”, e as formações executivas assumiram essa tese. Nos seus módulos, tanto se fala de sementes, da competitividade das fileiras regionais de certos produtos, ou, como refere Antonieta Cunha e Sá, na importância de dominar os “conceitos básicos da teoria económica”. Essa é, de resto, a visão que os fundos internacionais aplicam nos seus programas de recrutamento.

Na formação executiva, dirigida a quadros com diferentes níveis de relação com a terra, as árvores ou as sementes, procura-se afinal ir ao encontro dessa transversalidade. No geral, há aulas práticas, visitas de estudo, estudo de casos. Na Católica, entre os 25 a 30 formandos, há sempre a preocupação “de abrir vagas para jovens de outras licenciaturas”, diz Filipe Ravara. Para que possam “entrar em contacto com os mais velhos”, explica o académico e gestor.

Esses saberes serão depois importantes não apenas para preencher os requisitos de recrutamento dos serviços públicos ou das empresas já existentes, mas também para dar respostas às necessidades dos fundos de investimento nacionais e internacionais. “Antes de decidir, um fundo destes quer saber onde a terra produz mais ou menos, se há água garantida ou não, que impactes ambientais são esperados, etc.”, diz João Coimbra. “Eles não vêm para cá à procura de fantasias”, acrescenta. Estas exigências dos fundos aumentaram o papel de empresas de consultoria, como a Consulai ou a Agroges. E quando as suas intenções de investimento se concretizam, abrem o mercado de trabalho do sector para os quadros mais qualificados.

Já não são apenas os espanhóis, que tiveram um forte contributo no avanço do olival regado pelo Alqueva, a trazer capital e inovação para a agricultura nacional. Hoje em dia há fundos de brasileiros ou norte-americanos que apostam no amendoal, nos frutos vermelhos, nas hortícolas. A sua procura por eficiência muda tudo.

No amendoal da Rota Única, no Baixo Alentejo, bastam dois engenheiros, Pedro Vieira e Inês Banaco, para gerir centenas de hectares de plantação. Nas contas de José Pedro Salema, que dirige a Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva (EDIA), no perímetro de rega de 170 mil hectares há pelo menos entre 20 a 25 mil hectares detidos por entidades ligadas a fundos internacionais. O que permite fazer uma ideia sobre o número de quadros qualificados que a nova agricultura está a empregar.

Resta saber se a tendência dos últimos anos vai continuar. O Alqueva chegou a um tal ponto de sucesso que, de acordo com as contas de Pedro Santos, director-geral da Consulai, os preços da terra “rondam hoje os 25 a 30 mil euros por hectare”, quando “há alguns anos estavam entre 12 e 15 mil”. No Ribatejo, a procura está tão alta que João Coimbra tem dificuldade em perceber como poderá garantir o crescimento da sua exploração modelar. Uma nova vaga de fundos encontrou alternativa no perímetro de regra de Idanha, que hoje acolhe vultuosos investimentos no amendoal da Awa (Agro Water Almonds), que em 2021 anunciou um investimento de 10 milhões de euros na região, da Veracruz ou da Duck River.

Mas mesmo que o investimento em novas grandes áreas de exploração fique congelado, a mudança em curso no sector, que motiva o recurso à formação qualificada, não vai parar. “Na anterior geração, os filhos dos agricultores não queriam ficar nas empresas da família”, diz Clara Moura Guedes. “Isto agora mudou.” A mudança geracional e os exemplos de sucesso tenderão a prolongar o movimento da agricultura portuguesa em direcção à modernidade dos drones ou dos sensores. Definitivamente, o sector deixou de ser um mero parente pobre da economia.

Manuel Carvalho