Quem é Donald Trump? Esta é a perplexidade do momento, que desafia a generalidade dos analistas e afecta todo o mundo. Antes do meio do mandato, os estudos multiplicam-se, sem realmente responderem à questão. Não sabemos o que ele é, mas conseguimos já dizer bastante acerca daquilo que não é. Se isto não resolve o enigma, circunscreve a dificuldade.

Antes de mais, Trump não é totalitário. Este ponto, apesar de óbvio, precisa de ser repetido, pois tornam-se banais as comparações com Hitler. É essencial a lição de Hannah Arendt, no clássico de 1951, As Origens do Totalitarismo: "Até hoje conhecemos apenas duas formas autênticas de dominação totalitária: a ditadura do nacional-socialismo após 1938 e a ditadura do bolchevismo desde 1930. Estas formas de domínio diferem basicamente de outros tipos de regime ditatorial, despótico ou tirânico" (edição de 1979, p. 419). Segundo a autora, tais situações extremas, que terminaram só com a morte de Hitler e Estaline respectivamente (p. xxxvii), não têm paralelo, por exemplo, com o que aconteceu antes e depois na URSS.

O que define tal estado extremo de opressão é o facto de "a dominação totalitária pretender abolir a liberdade, eliminar mesmo a espontaneidade humana em geral, não sendo, de forma nenhuma, uma restrição da liberdade, por mais tirânica que seja" (p. 404). O totalitarismo consubstancia o poder absoluto de um homem, no sentido absoluto da palavra "absoluto". Esses regimes não têm estratégia, programa, orgânica, poderes definidos, vivendo em tumulto constante, purgas sucessivas e indefinição estrutural. Tudo para que "a vontade do Fuehrer possa ser incorporada em todo o lado e em todo o tempo, e ele mesmo não esteja preso a nenhuma hierarquia" (p. 405). Nem os casos de Mao, Ceausescu e Kim Il-sung chegaram a tal extremo, quanto mais os actuais potentados.

Em segundo lugar, Donald Trump não é um ditador populista, como Nicolás Maduro e Rodrigo Duterte, ou um tirano orgânico, ao estilo de Vladimir Putin e Bashar al-Assad. À primeira vista, a grande razão da diferença é o sistema político norte-americano, especialmente desenhado para evitar ditaduras. Não há dúvida de que as singularidades dos Estados Unidos tornam enganadora a maior parte das comparações. Mas será admissível dizer que tais coisas não podem acontecer ali?

Foi para desafiar esta ilusão complacente que Sinclair Lewis publicou, em Outubro de 1935, o romance It Can't Happen Here, descrevendo a impensável vitória de um populista ao estilo nazi nas eleições do ano seguinte, de que já se vivia o fragor. A obra, que anda na lista dos best-sellers da Amazon desde o sufrágio de 2016, ajuda a compreender o carácter de Trump, no contraste com um fascista tipicamente americano, Berzelius "Buzz" Windrip, o líder no romance.

O primeiro aspecto que falta hoje são tropas de choque. Mussolini tinha os "camisas negras", Hitler as SA e as SS, Windrip os "minute men". Trump, pelo menos por enquanto, não tem forças próprias. Nem sequer controla realmente o Partido Republicano. A sua candidatura, improvisada e inorgânica, venceu inesperadamente, até contra as próprias expectativas, como está largamente documentado. Desde então, e apesar da euforia nos comícios e sólida minoria de apoio, não existe qualquer movimento de suporte ao presidente. Este aspecto pode dizer-se único na longa história das tiranias.

O segundo facto que o distingue do género é a ausência de doutrina, programa e, até, estratega. Stephen Bannon, que desempenhou esse papel nos primórdios da governação, que no romance pertence a Lee Sarason, saiu em Agosto de 2017 e não foi substituído. A obra de referência do regime, o Mein Kampf de Trump, chama-se Trump: The Art of the Deale é, supostamente, um livro de gestão. É verdade que este vazio de orientação o aproxima do totalitarismo tardio, que cultivou a indefinição como meio de chegar ao poder absoluto do líder. Mas, na falta das outras componentes definitórias, tal vácuo esboroa, não potencia autoridade.

Assim, é evidente que Donald Trump não é um chefe totalitário, não é referência de ideologia ou programa populista, nem é sequer líder de um movimento organizado. Esta pequena lista das características que lhe faltam basta para mostrar tratar-se de um fenómeno novo e original, sem paralelo directo nos anais da política internacional. O próprio elemento definitório da administração, a utilização sistemática do Twitter para formulação, implementação e análise de políticas, manifesta estarmos perante algo radicalmente excepcional.

Sabemos aquilo que não é. Talvez só os historiadores venham a conseguir estabelecer os contornos, e saber o que realmente é. Existe forte probabilidade de ele ser precisamente aquilo que parece: um grande comunicador, narcisista e autocentrado, que entrou nesta aventura por razões mediáticas, e usa como orientação os caprichos do momento, que considera geniais. Por isso, o livro sobre o tema publicado nesta semana pelo reputado jornalista Bob Woodward, tem o título sugestivo de Medo.

 

João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.