O governo anunciou recentemente que a Anacom será a autoridade de supervisão de mercado na área de inteligência artificial. A decisão vem na sequência de outra do ano passado que atribuiu à Anacom funções de coordenação na supervisão de serviços digitais. Aproveitam-se os recursos de uma entidade administrativa constituída sobretudo para a liberalização das comunicações e que, bem concluídos os principais aspetos desta missão há já alguns anos, tinha um vazio a preencher desde o final da década passada. Parece-me boa a ideia, mas não estou certo de que tenham sido até agora consideradas todas as suas consequências. Algumas são óbvias, como a necessidade de se preparar a organização com o conhecimento indispensável para as novas funções. Nalguns casos, os quadros existentes adaptar-se-ão bem a novas funções, que certamente irão desempenhar com a competência que sempre tiveram. Noutros será preciso contratar recursos adicionais.
No entanto há pelo menos outras duas consequências que exigem um nível de reflexão que, a existir, não é evidente. A primeira tem a ver com a independência em relação ao governo que a Anacom deverá, ou não, observar na área dos serviços digitais e da inteligência artificial. Deve agir como autoridade independente nos termos em que tinha de agir na regulação de comunicações, nos casos em que essa independência estava explicitamente prevista nas diretivas? Não se vê que tenha de ser assim, dado que nem o Regulamento dos Serviços Digitais nem o Regulamento de Inteligência Artificial o impõem. O que estabelecem é diferente do que se estabeleceu nas diretivas de comunicações eletrónicas, ou na proteção de dados pessoais. Assim, a eventual independência da Anacom em relação ao governo no exercício das suas novas atribuições depende sobretudo da vontade do próprio governo. Se o governo pretender garantir essa independência então, como boa prática política e nos termos da Lei-quadro das entidades administrativas independentes, deve fundamentar essa opção. Julgo que há aqui coisas a fazer. O governo ainda não estabeleceu, nem fundamentou, de forma inequívoca se nas suas novas atribuições a Anacom deve atuar como autoridade independente do próprio governo.
A segunda consequência a ser ponderada tem a ver com o financiamento da Anacom. Naturalmente, o modelo de financiamento original é o de um regulador de comunicações. Assim, os custos de regulação são pagos pelos operadores de comunicações. As novas atribuições que a Anacom tem recebido vão consumir mais recursos e é possível que as atribuições tradicionais de regulação venham a exigir menos recursos. Ora, as novas entidades reguladas, ou supervisionadas não são operadores de comunicações. Vão ser estes últimos a suportar os custos da regulação dos prestadores de serviços digitais e de inteligência artificial? Parece haver aqui necessidade de reformular o modelo de financiamento.
Enfim, compreendem-se as opções políticas do governo sobre a regulação dos serviços digitais e da inteligência artificial, mas parece haver algumas coisas básicas a esclarecer. A reestruturação da Anacom que é necessária não depende só de decisões do seu conselho de administração. Deve partir de uma atualização do quadro legal em que a Anacom se integra, para que as suas novas atribuições tenham fundamentos técnicos e legais tão sólidos quanto possível.
João Confraria, Professor na CATÓLICA-LISBON