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Evitar a ruína

Sábado, Novembro 3, 2018 - 16:23
Publicação
Diário de Notícias

 

No passado domingo a 7ª maior economia do mundo caiu nas mãos de um populista. Jair Bolsonaro juntou o seu país ao grupo onde já estão as duas maiores economias mundiais, China e EUA, a 6ª, Rússia, e da 11ª à 13ª, Itália, México e Turquia. Em todos estes estados dominam líderes messiânicos que prometem prosperidade fácil, substituindo a corrupta classe política. Este clube, com quase metade (44%) do produto global, apesar de esmagador, constitui apenas parte da ameaça extremista actual, que se sente em toda a Europa, América Latina e outras zonas do globo.

A conclusão inescapável é que está em risco aquela ordem social, nacional e internacional de abertura, cooperação e respeito que, apesar de todos os defeitos, manteve nos últimos 70 anos um grau de paz e prosperidade incomparável com qualquer outra era do planeta. É contra essa ordem que explicitamente os extremistas se insurgem; é contra essa ordem que os eleitores votam. A história repete-se: também há cem anos os povos se insurgiam contra o regime e a ordem mundial da Belle Époque, que tinham gerado o maior período de paz e prosperidade que o mundo conhecera até então. Com 44% do mundo, o surto actual de populismo é, talvez menos virulento, mas mais vasto que nos anos 1930.

O radicalismo é sempre justificado. Os apoiantes de Bolsonaro, como os que elegeram Mussolini, Hitler, Mugabe, Marcos, Putin, Chávez, Erdogan, Trump, Salvini e tantos outros, têm excelentes razões para isso. Os inimigos da democracia sabem sempre muito bem porque o são. De facto, a ordem de paz e prosperidade após 1945, como aquela que vigorou de 1871 a 1914, deixa muita gente descontente. De novo, o sistema livre e democrático parece obsoleto e incapaz.

É fácil dizer mal do que se tem; difícil é fazer melhor. A raiva compreensível tem consequências catastróficas. O descontentamento, elegendo ditadores, não levará a uma ordem mundial de contentamento, mas de desgraça. Tal como no século passado, aqueles que não forem devorados pela tirania, viverão para se arrepender amargamente das consequências da sua insatisfação. Hoje, após tantos exemplos terríveis, só uma absurda ignorância histórica justifica apoio a caudilhos redentores de direita ou esquerda. Ignorância, ou a velha falácia que «desta vez é diferente». Desde Pisístrato, na Atenas do século VI aC, que sabemos que não é. Mesmo nas raras excepções em que a ditadura deixou os países mais prósperos do que os encontrou, com Lúcio Sila, Salazar, Franco ou Pinochet, será que as perdas por abandono da justiça e liberdade compensam ganhos laterais?

O mundo vive indiscutivelmente um novo período de sedução populista. O nome do mal, comum a todos estes surtos, é divisão. Os radicais surgem sempre em países irremediavelmente estremados em campos inconciliáveis. É isso que hoje vemos entre democratas e republicanos nos EUA, no Brexit do Reino Unido, no Brasil, Itália e Espanha, etc.: países irredutivelmente desavindos. Os temas são muito variados, mas opõem sempre cidadãos em posições incompatíveis. Essa discordância gera protestos, confrontos, vítimas, raivas crescentes, que alimentam os tais líderes populistas. Mas o radicalismo, filho natural da divisão, aumenta a moléstia, não a trata. Uma doença só é curada pelo oposto de si própria.

Como se trata então esta terrível peste, de que conhecemos bem as consequências? A resposta é mais fácil do que parece. A partir de certos níveis de clivagem, só uma catarse destruidora permite a redenção. Esperemos ainda não estar aí, conseguindo evitar tal ruína. Nesse caso, alguns elementos da salvação são claros.

A principal atitude tem de ser a reafirmação dos valores da justiça, democracia e cooperação que nos trouxeram paz e prosperidade. É preciso afirmar a unidade, mesmo face à discórdia, defender a liberdade, até diante de abusos, promover a justiça face à corrupção. Temos de defender esses valores perante a vaga populista, pois devemos-lhe tudo o que temos. Mesmo aqueles que, sentindo-se hoje injustiçados e marginalizados, andam seduzidos pelos ditadores, têm de admitir tudo o que beneficiaram da democracia e globalização. Não deveria ser preciso cair de novo no desastre da tirania, proteccionismo e agressividade para compreender isso. Mas compreender isso não deve impedir as reformas que eliminem as razões de queixa que elegeram os extremistas, pois isso também é afirmar justiça e democracia

Finalmente, é preciso aplicar os valores da cooperação aos próprios populistas. Os extremistas do nosso lado adoram fazer denúncias, insultos, condenações retóricas. Mas tratar os opositores com rudeza ou brutalidade, com que tantas vezes nos tratam, por merecido que seja, só confirma o mal que nos repugna. Os que se opõem ao sistema, mesmo pérfidos, não são monstros acéfalos. São seres humanos que riem, amam, sofrem e esperam como nós. Chegaram a estas posições incompreensíveis após enormes mágoas, reais ou imaginárias. Têm razões, mesmo distorcidas e mesquinhas, para fazer o que fazem. Devem ser atendidos.

 

João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.

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