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A nova ortodoxia económica

Quarta, Outubro 14, 2020 - 15:42
Publicação
Jornal de Negócios

Dada a complexidade e dinâmica da economia é preciso ter uma mente aberta e constantemente analisar as evidências e atualizar os modelos.

Nunca a política económica foi tão relevante. Numa altura em que os bancos centrais injetam liquidez massiva nos mercados financeiros para evitar o colapso da economia, em que milhões de empregos na Europa foram salvos com medidas temporárias de proteção de emprego, e em que se negoceiam em Portugal medidas de apoio económico no Orçamento de 2021 dentro da escassa folga orçamental existente, a economia está na ordem do dia.

E, no entanto, a teoria económica parece estar de pernas para o ar. Concluí o meu curso de Economia há 25 anos. Se eu perguntasse aos meus professores de Economia da altura se era possível uma economia existir com taxas de juro negativas dir-me-iam que isso seria um absurdo. E se eu perguntasse se um banco central deveria comprar diretamente ações e obrigações de empresas no mercado, dir-me-iam que nunca tal deve ser feito. Ironicamente, aqui estamos nós nessas exatas situações.

No início dos anos 90, durante o meu curso, aprendi a minha dose de ortodoxias - verdades sobre o comportamento das variáveis económicas que pareciam evidentes. Como eu, uma geração de economistas foi treinada nas universidades a acreditar num conjunto de regras económicas derivadas da evidência existente e do contexto económico da época. Mas um bom economista, como qualquer bom cientista, não se deve prender às ideias do passado, mas deve ser capaz de as reavaliar face à evidência do presente para planear o futuro. Em boa hora a revista "The Economist" decidiu realizar nos últimos meses uma série de análises sobre algumas das principais ortodoxias económicas, atualizando o conhecimento existente. Neste artigo, eu sintetizo duas questões que estão na ordem do dia - a relação entre desemprego e inflação e o impacto de um aumento do salário mínimo no emprego.

A primeira ortodoxia que quero abordar é a correlação negativa entre inflação e desemprego, a famosa curva de Phillips que diz que numa economia ou se conseguiria ter pleno emprego com inflação (porque a situação de pleno emprego induziria um aumento de salários o que provocaria um aumento de custos de produção o que aumentaria o preços dos produtos e serviços, sendo que a expectativa de preços elevados levaria a uma exigência de maiores salários criando uma espiral inflacionária) ou se teria elevado desemprego e baixa inflação, pois o aumento de desemprego levaria a menores salários e menor poder de compra, baixando o nível de consumo e os preços, o que levaria a menor emprego e novamente a uma espiral desta vez recessiva. Neste contexto, os bancos centrais têm um papel essencial a desempenhar de ajustamento económico, gerindo as taxas de juro para manter a economia em equilíbrio em torno de um valor ideal de inflação, que se acredita ser perto de 2%, evitando quer a espiral inflacionária quer a espiral recessiva. Esta teoria esteve em voga até 2010, mas, após a grande recessão, as economias ocidentais viveram uma década de inflação persistentemente baixa, a roçar a deflação, enquanto o desemprego se reduziu para valores próximos do pleno emprego na maior parte das economias desenvolvidas. Parece assim que a correlação negativa entre inflação e desemprego desapareceu e a taxa de juro de equilíbrio mundial baixou também, fruto das enormes poupanças acumuladas no sistema financeiro ao longo das últimas décadas. Assim, os decisores económicos podem tentar manter a economia perto do pleno emprego sem recear inflação, mas a sua capacidade de reagir a crises económicas descendo as taxas de juro é agora muito reduzida por as taxas de juro já estarem negativas, obrigando assim os bancos centrais às maciças intervenções de liquidez que temos visto. Ou seja, no contexto económico atual, o perigo da espiral inflacionária parece ter deixado de existir, mas a espiral recessiva é muito mais perigosa e difícil de combater do que dantes.

A segunda ortodoxia é a de que a imposição ou aumento de um salário mínimo numa economia irá disparar o desemprego, afetando em particular os trabalhadores mais jovens e com qualificações mais baixas pois há negócios e atividades baseadas em mão de obra barata que deixam de ser viáveis com um salário mínimo alto, o que aumenta os despedimentos e reduz as novas contratações. Na década de 90, quase 80% dos economistas acreditavam nesta relação entre salário mínimo e desemprego o que levou alguns países, em particular os Estados Unidos da América, a descerem o valor real dos salários mínimos. Na Europa, o movimento foi o inverso com um aumento generalizado do salário mínimo em diversos países. A evidência que agora existe indica que, ao contrário do pensamento dominante, um aumento do salário mínimo não aumenta o desemprego e até pode aumentar o emprego ao incentivar uma maior proporção da população a participar no mercado de trabalho. A razão é que o mercado de trabalho não é completamente eficiente e existe maior poder negocial do lado das empresas do que dos trabalhadores individuais, pelo que um salário mínimo equilibra melhor o mercado de trabalho, podendo ainda aumentar o consumo e induzir maior crescimento económico. No entanto, um aumento do salário mínimo para um nível elevado pode levar a quebras de emprego no médio-longo prazo, por um lado ao incentivar as empresas à automação e, por outro lado, pela deslocalização de atividade produtiva para países de mais baixos salários. Ou seja, em economia não há almoços grátis, mas alguns pequenos-almoços baratos ainda se consegue.

O que estas novas evidências nos ensinam é que a economia (enquanto sistema complexo de organização dos recursos e talentos de uma sociedade com vista a satisfazer as necessidades das populações) não se presta a interpretações simplistas das relações económicas. Dada a complexidade e dinâmica da economia é preciso ter uma mente aberta e constantemente analisar as evidências e atualizar os modelos.

No entanto, atualmente, há a tendência em assumir-se uma visão simplista da economia norteada por ideologias rígidas e dicotomias ilusórias. Ser de esquerda ou de direita. Ser liberal ou socialista. Ser pelo público ou pelo privado. Mas o uso destes chavões para substituir o pensamento económico é preguiça mental e deslealdade intelectual. A realidade económica é mais complexa do que as ideologias. É feita de dinâmicas, de incentivos, de expectativas, e de instituições. A economia deve ser construída com a melhor combinação da iniciativa privada e de serviço público, com regulação competente e independente num sistema com transparência e livre de conflitos de interesse. Onde o mérito seja recompensado, a corrupção punida e a inovação premiada. Em que o poder não possa ser excessivamente acumulado e a igualdade de oportunidade seja garantida. Onde a liderança seja responsável e o apoio social garantido aos mais desprotegidos pelo sistema. Só assim poderemos ter uma economia ao serviço de todos e de cada um e ao serviço da nossa casa comum.

 

Filipe Santos, Dean of Católica Lisbon School of Business & Economics

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