Press News & Events

Liderar com propósito em tempos de crise

Tuesday, January 19, 2021 - 21:40
Publication
Jornal de Negócios

A dor e o prejuízo devem ser partilhados por todos (acionistas, trabalhadores, cadeia de valor, Estado) pois só essa partilha alargada e justa das perdas causadas pela pandemia permite criar folga financeira para manter o sistema económico em atividade.

Esta semana tenho a honra e responsabilidade de iniciar um novo mandato de Dean da Católica-Lisbon, business school europeia de referência há mais de 15 anos e um hub de atração de talento de nível mundial, proporcionando o desenvolvimento de carreiras extraordinárias. Inicio este mandato no contexto económico e sanitário mais desafiante em muitas décadas. Gostaria de abordar neste artigo alguns dos desafios da liderança em tempos de crise.
 

Realismo versus esperança

Devem os líderes explicar a gravidade das crises ou escondê-la dando esperança às pessoas? A esperança é necessária, mas nunca à custa da verdade. Os líderes não devem mentir, mesmo que isso pareça politicamente correto no curto prazo. Mais vale assumir a verdade, explicando-a e tirando daí as necessárias consequências. Como tentou fazer Graça Freitas ao declarar em fevereiro de 2020 a verdade – que a DGS estava a trabalhar com um cenário de 1 milhão de infetados em Portugal ao longo da pandemia, o que era um dos cenários plausíveis dada a evidência científica existente. Afirmação que na altura pareceu incrível para a maioria das pessoas e que depois teve de rapidamente retirar e reenquadrar para não assustar. Um ano depois, já com cerca de 600.000 portugueses infetados pela covid-19, não teria sido melhor assumir que essa estimativa era realista e preparar a sociedade para esse cenário negativo, em vez de andarmos a correr atrás do prejuízo em cada nova vaga da pandemia? Os líderes habituaram-se a dizer às pessoas o que pensam que elas gostariam de ouvir na esperança de que, na espuma dos dias, as pessoas se esqueçam das mentiras ou meias-verdades que foram anteriormente contadas. E nesse processo, as pessoas perdem a confiança nos seus líderes e no próprio sistema. Mas qual o lugar, neste contexto de realismo, para a criação de esperança? A esperança é o que nos dá força e resiliência para enfrentar os momentos difíceis. Deve ser uma esperança inspiradora, que aponte caminhos de futuro mas seja adequada à realidade. Vender esperança baseado em falsidades é receita para deceções. Os grandes líderes são capazes de inspirar esperança contando as verdades, por muito duras que elas sejam.
 

Coerência versus adaptação

Numa crise profunda, o contexto altera-se com grande rapidez podendo exigir alterações táticas de comportamentos e ações. No entanto, os líderes devem focar-se na situação estrutural e objetivos de médio prazo e evitar agir de forma inconsistente ao reagir aos eventos do momento. Se hoje se diz a todos para ficar em casa para interromper contágios, amanhã se diz para sair e consumir para salvar a economia, e depois de amanhã se diz para ficar em casa para salvar vidas, as pessoas deixam de ter sinais claros para guiar o seu comportamento. Tratar as pessoas como adultos responsáveis não impede de dar diretrizes e traçar linhas de comportamento claras, indicando prioridades e evidenciando os valores e objetivos mais importantes. É, aliás, a definição clara desses objetivos e a ação sistemática para os alcançar que permite implementar uma estratégia consistente. Se a estratégia é manter a pandemia sob controlo de forma a evitar mortes e a sobrecarga do sistema de saúde, tudo isto sem destruir a capacidade produtiva da economia e sem prejudicar a educação das gerações futuras, então persigam-se esses objetivos de forma sistemática, sempre com disciplina, mantendo o rumo apesar das adversidades.
 

Salvar o presente versus construir o futuro

Já no contexto empresarial, as organizações desenvolvem estratégias adaptadas às suas capacidades, ambição e contexto. Uma pandemia provoca uma alteração radical do contexto e pode exigir uma alteração de estratégia. E esta pandemia traz-nos uma realidade profundamente alterada durante 18 meses, gerando um mundo diferente a partir daí. Cada líder, com as suas equipas, terá de perceber as alterações estruturais desse novo mundo e desenhar uma nova estratégia, a qual tem de começar a ser implementada em período de crise profunda. Nesse processo, a dor e o prejuízo devem ser partilhados por todos (acionistas, trabalhadores, cadeia de valor, Estado) pois só essa partilha alargada e justa das perdas causadas pela pandemia permite criar folga financeira para manter o sistema económico em atividade. Neste contexto, ganha uma dimensão extra o conceito de “liderança com propósito”, definida como aquela que alinha os investidores, colaboradores, clientes e outros stakeholders relevantes através de um propósito partilhado que vai para além do interesse direto dos mesmos. As empresas que já tenham um propósito claramente definido e aceite por todos têm certamente agora uma vida mais fácil – desde a comunicação à motivação dos seus colaboradores, e à lealdade em toda a cadeia de abastecimento.
 

Proteção individual versus sobrevivência coletiva

Cada um de nós pode ser líder a múltiplos níveis – do seu núcleo familiar, da sua comunidade, da sua empresa, do seu país. Em momentos de crise, a sobrevivência coletiva depende da capacidade de cada um de nós de liderar com o seu esforço e exemplo, aos níveis que sentir mais paixão e capacidade de ação. Uma sociedade com liderança distribuída é uma sociedade mais resiliente e robusta, capaz de enfrentar os maiores desafios. E em tempos de crise profunda, ser líder é uma responsabilidade acrescida mas é também um chamamento. Um chamamento que, numa situação de pandemia como esta em que se agudizam desigualdades e os mais vulneráveis são os mais expostos, exige uma solidariedade profunda e nobre. Como aquela que devemos ter pelas gerações mais seniores que tanto deram a este país e a quem tanto devemos.
 

Em resumo, ao contrário das lideranças populistas que distorcem a realidade para o seu próprio interesse, inventando crises e conflitos que não existem, um contexto de pandemia provoca uma crise objetiva que tem de ser gerida com verdade, firmeza, sabedoria e consistência. A realidade que vivemos é muito desafiante e não pode ser lidada com soluções simplistas nem ideologias espúrias, mas sim com o pragmatismo dos equilíbrios difíceis, como os preconizados neste artigo. Acima de tudo, liderar é servir os outros e procurar o bem comum trazendo prosperidade ao ecossistema de que a nossa organização faz parte. Esse é o propósito que nos deve guiar.

 

Filipe Santos, Dean da Católica Lisbon School of Business & Economics​

Related Press News

03/01/2022 - 09:50
Observador
A história dos efeitos duma crise no emprego e no rendimento escreve-se olhando tanto para os empregos destruídos durante a crise como para os empregos criados durante a recuperação. Na passagem de ano comemos 12 passas e pedimos 12 desejos. Muitos...
28/12/2021 - 09:49
Jornal de Negócios
A conjuntura pandémica atual, que exibe um novo pico de infeções no final do mês de dezembro, mais as pressões inflacionistas que se sentem na Economia global são fontes importantes de preocupação e provavelmente serão tema de discussão na campanha para...