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Big Brother telefonou

Monday, August 13, 2018 - 09:13
Publication
Diário de Notícias

No caminho para o totalitarismo digital, o dia 2 de Agosto de 2018 marca um passo importante. Nessa data, pela primeira vez, o Estado arrogou-se o direito de enviar mensagens telefónicas (sms) a todas as pessoas em determinadas zonas. Os objectivos eram muito louváveis (são sempre) e a generalidade da população até se divertiu com o procedimento, mas subiu imperceptivelmente o poder de controlo público sobre as nossas vidas.

A mensagem em causa era bastante inocente (começam sempre assim): "Risco extremo incêndio rural nos distritos Beja e Faro. Fique atento. Em caso de dúvida: 800 246 246. www.prociv.pt." Nos dias seguintes foi multiplicada, sendo recebida, nesta operação inicial, em mais de sete milhões de telemóveis, portugueses e estrangeiros (sempre em português), desde que situados nos distritos em alerta vermelho. Tratou-se de um grande sucesso operacional da Autoridade Nacional de Protecção Civil, juntamente com a Autoridade Nacional das Comunicações, os operadores de comunicações móveis e a Secretaria-Geral da Administração Interna, sob a supervisão do secretário de Estado da Proteção Civil.

Deve ainda dizer-se que a operação concretiza uma imposição legal, definida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 157-A/2017 de 27 de Outubro. Na sequência dos horríveis desastres do ano passado, foi imposto nesse documento "Criar uma rede automática de avisos à população em dias de elevado risco de incêndio, com o objetivo da emissão de alertas para proibição do uso do fogo, bem como outras atividades de risco e ainda medidas de autoprotecção, dirigidas para públicos específicos". (II.2). Aliás, na boa prática de instituições paramilitares, o processo fora testado a 19 de Maio anterior, no contexto do exercício operacional Montemuro 2018, apenas nos distritos de Aveiro e Viseu.

Tem de se reconhecer que a iniciativa é espúria e inútil, nada adiantando para o combate real aos incêndios. Terá sido relevante apenas para alguém tão distraído que, não só não veja notícias mas nem repare nas temperaturas. Tratou-se de uma típica intervenção de burocrata, com grande aparato operacional sem qualquer contributo concreto. Revela actividade, não eficácia, mostrando aos cidadãos o poder e benevolência governamental, sem resultados práticos. Mas regista um grande sucesso dos serviços, mesmo se em diligências laterais e ociosas, que fica sempre bem nos relatórios anuais.

Pior, poderia ser realmente nociva. Bastava que reagisse menos de um milésimo das pessoas que receberam a mensagem, para entupir completamente os serviços de resposta da protecção civil. Serviu realmente apenas para manifestar que a nossa Autoridade está na ponta das tecnologias. Embora se deva dizer que, se querem fazer isso, deviam rever o inacreditável site www.prociv.pt, onde nada se consegue encontrar, além de demorar imenso tempo a carregar, pelo peso de fotos e scripts. Se alguém, em emergência, recorrer por este meio à protecção civil, bem pode desesperar.

Porque é que o Estado fez isto? Porque pode. Este é, sem dúvida, o elemento mais decisivo. As autoridades, finalmente, conseguem aquilo que sempre desejaram: chegar a toda a gente ao mesmo tempo. Basta premir um botão e os cidadãos ficam imediatamente à escuta. Nem as piores distopias, como Admirável Mundo Novo, de Huxley (1932), ou Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de Orwell (1949), tinham mais. Por enquanto foi apenas avisar dos fogos, mas é um primeiro passo. Em breve teremos o dinheiro dos nossos impostos usado para nos encher os telemóveis com todas as mensagens que as autoridades considerem úteis, relevantes, adequadas.

Não deve o Estado utilizar as novas tecnologias? Claro que deve. Aliás, Portugal é pioneiro nesse campo, sendo sucessivamente citado em estudos internacionais como um dos melhores do mundo em e-government. Vamos passar décadas a pagar as enormes dívidas que contraímos para financiar a extravagância de pretender ultrapassar os ricos neste processo. Mas a utilização das novas tecnologias deve ser dirigida pontualmente a cada cidadão, e só para servi-lo melhor. Sem nunca esquecer que estas técnicas vêm com grandes perigos anexos que, como sabemos, levantam especial alarme nas mãos de entidades poderosas. E nenhuma é mais poderosa do que o Estado.

Esta operação da Autoridade Nacional de Protecção Civil mostra um aspecto dessas tecnologias que ninguém pode utilizar senão o governo. Quem tem telemóvel recebe muitas mensagens não solicitadas, bastantes delas incómodas e até irritantes. A própria operadora abusa da sua posição descarregando publicidade sobre os utilizadores, mas muitas outras empresas se aproveitam do meio para mensagens comerciais. Todos estes casos, porém, são limitados, porque ninguém, a não ser o Estado, tem o invejável poder de enviar a mesma mensagem a toda a gente ao mesmo tempo. Foi isso que agora aconteceu, ultrapassando-se uma nova barreira cívica. Se aceitarmos, depois não nos admiraremos quando as autoridades usarem este meio em coisas mais indesejáveis.

 

João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.

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