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Os esquimós têm mais de 50 palavras para designar “neve”. É pena que, num tema tão influente entre nós como é a subida de preços, a opinião pública ouça sempre só um termo: “inflação”. A verdade é que essa expressão esconde vários problemas diferentes, com efeitos diferentes e curas diferentes, que assim ficam confusos na análise social.
O que estamos a sofrer não é realmente inflação. Isso, na pureza dos conceitos, corresponde ao impacto interno de uma perda do valor da moeda, cuja face externa é a desvalorização cambial. Mas o que se passa connosco é que estamos mais pobres; temos menos do que costumávamos ter. Esse empobrecimento manifesta-se, por enquanto, apenas pela subida de preços, mas isso é sintoma, não doença.
Estamos mais pobres, não por razões político-económicas, mas devido à fraqueza e loucura da Humanidade, que se manifestam nas duas desgraças que nos assolam, uma peste e uma guerra das mais violentas da história recente que caíram sobre o mundo em menos de dois anos. Se isso não nos empobrecesse, nada mais o faria. Só que, como os políticos e cidadãos não querem admitir a perda, atribuem o sofrimento a uma banal maleita monetária, a tal inflação, que normalmente consegue alívio com terapêuticas conhecidas. Mas a pobreza que nos aflige, ao contrário da inflação, não tem cura fácil. Podemos dar analgésicos, distribuir a carga, animar os espíritos, mas a desgraça não tem solução próxima.
Não é difícil compreender como a pandemia COVID-19 e a invasão a Ucrânia nos empobrecem. A primeira é uma enorme catástrofe sanitária, com efeitos económicos variados ao longo da sua vigência. Começou por nos fechar em casa, o que reduzia a produção, subindo os preços, mas também o consumo, descendo-os. Assim, no total, os níveis não mudaram muito. Mas essa época do confinamento já acabou há muito. O que vivemos agora é as nossas compras a voltar ao normal, mas a ressaca das restições pandémicas ainda afetando gravemente as empresas. Além de outros epifenómenos, como aeroportos caóticos, o efeito inevitável é subida de preços.
Quando ao segundo choque, pode parecer estranho que uma guerra longínqua, por dramática que seja, afete o nosso cabaz de compras. Mas quando os beligerantes são os maiores fornecedores mundiais de comida e energia, a inflação é o menor dos nossos problemas, perante a ameaça de um inverno com fome e sem aquecimento.
Talvez seja conveniente, para alguns leitores mais atentos, referir um outro elemento que, sem dúvida, é influente, mesmo se menor. A crise global anterior, que rebentou há 14 anos, teve causas politico-económicas. A derrocada financeira de 2008, com sequelas em 2011, foi causada por um endividamento irresponsável. O tratamento exigia reformas profundas mas, na maior parte dos países, ficou-se apenas pelos paliativos. Uma injeção maciça de liquidez eliminou os sintomas e permitiu evitar os maiores custos económicos.
Isso, porém, criou a longa situação aberrante com que enfrentámos as convulsões recentes: cerca de dez anos de taxas de juro quase nulas e preços estáveis, em contradição com o excesso gigantesco de moeda em circulação. A explicação do paradoxo encontra-se na falta de confiança, que impedia o dinheiro de circular normalmente. A liquidez encontrava-se entesourada nos balanços de bancos, empresas e famílias, temerosos do que aí vinha. E, de facto, o que veio não foi bom.
Deste modo, os choques violentos da gripe e da guerra aconteceram no insólito mundo com mais moeda que nunca. A reação inicial, face à paralisia do confinamento, foi aumentar ainda mais a emissão de dinheiro, aguentando uma economia em risco de depressão. Mas na segunda fase, já com preços em espiral, era indispensável subir a taxa de juro e parar, ou mesmo inverter, essa emissão.
Tais medidas são indispensáveis, e estão a ser aplicadas, mas elas não vão eliminar a aceleração de preços, cujas causas, como se disse, são estruturais. A única coisa que conseguem é evitar que, em cima do choque, surja verdadeira inflação, a tal doença de desvalorização. Isso significa que os bancos centrais, protagonistas da terapêutica desde 2008, estão desta vez quase impotentes. Como se pode então tratar a dolorosa conjuntura?
Antes de mais, é preciso que aceitemos a perda de poder de compra. Se a comida e a energia custam mais, nós temos menos para viver, e não há ajustamento de estratégia que possa eliminar esse efeito. Quer isto dizer que as autoridades estão impotentes? Claro que não. Há muito a fazer, mas é a estratégia é complexa e delicada.04
Antes de mais é vital evitar a terrível tentação de manipular o sistema de preços, coração da afetação económica. Medidas de congelamento ou tabelagem de preços, bem como as reduções de impostos indirectos, parecem resolver a situação no imediato, mas realmente agravam o problema. A energia e alimentação estão mesmo mais caras. Se os consumidores e as empresas não sentirem esses custos, continuam a gastar como antes e arruínam o país.
"Aquilo em que os governos devem centrar as atenções, além de cuidar de fornecimentos alternativos, é criar sistemas de apoio aos mais necessitados."
Se durante os meses de confinamento as medidas governamentais foram decisivas para evitar uma catástrofe social, também agora há muito a fazer no campo da assistência. Não para eliminar a perda, mas para gerir o melhor possível o seu impacto. Em particular para distribuir a carga entre os grupos da comunidade, seja através das classes, como apoios variados, seja através do tempo, com endividamento.
Aqui os esquimós podem dar-nos outra lição. Habituados a viver em condições adversas, eles sabem que a sua sobrevivência depende da solidariedade e união da comunidade. Partilhando por todos, todos beneficiam. Quando a perda é geral, o pior que pode acontecer é alguns acharem-se com direito à imunidade. Esse corporativismo e egoísmo de classe constitui a doença mortal face à crise, muito pior que o choque que nos fez a todos mais pobres.
João César das Neves, Professor na CATÓLICA-LISBON