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Os protagonistas menos éticos irão aproveitar o estertor do ecossistema para tentar roubar e fugir. Os mais ingénuos irão assumir as culpas e pedir desculpa pelos excessos. E alguns, que até tinham uma gestão credível poderão ser apanhados nas ondas de choque e ir abaixo. Só os mais fortes, com gestão prudente e que desempenham um papel indispensável no ecossistema sobreviverão.

Nesta coluna, em abril de 2021, comparei a especulação em torno das moedas digitais à mania dos bolbos de tulipa que assolou a Holanda do século XVII e afirmei que esta bolha especulativa ia acabar muito mal. Em novo artigo publicado em agosto de 2022 insurgi-me contra a falta de regulação que permitia a cidadãos europeus incautos comprarem moedas digitais em máquinas na rua ou online, sem regras das autoridades e, no caso português, sem o pagamento de imposto sobre eventuais lucros. O inevitável está agora a acontecer. Nos últimos meses, a bolha das cripto moedas começou a rebentar. A Bitcoin, rainha e pioneira das criptomoedas, atingiu o pico de 68,000 dólares em novembro de 2021. Um ano depois, está a cair 75% ajudando a arrastar para baixo o ecossistema das moedas digitais e levando a uma série recente de falências de grandes fundos e corretoras que eram pessimamente geridas e pior reguladas. E, esta semana, executivos séniores do BCE vieram a público arrasar a Bitcoin dizendo que caminha para a irrelevância. Mas falam tarde e ainda por cima estão errados. O rebentar da bolha, apesar da destruição de valor que está a provocar, é bom para o papel que a Bitcoin e os sistemas distribuídos de ativos e pagamentos (DEFI) poderão desempenhar na economia, separando o trigo do joio. Vamos então analisar como a bolha surgiu, como rebentou, que ondas de choque terá, e o que se passará a seguir.

A maior parte das ondas especulativas têm, na sua essência, um padrão muito semelhante, sendo fáceis de reconhecer para quem tenha perspetiva histórica. Começam com uma inovação que cria um ativo novo, pouco conhecido, e com algum valor. Essa inovação (neste caso a Bitcoin e a blockchain como sua base tecnológica) é depois imitada por outros, criando inúmeras variantes (existem mais de 10,000 réplicas da Bitcoin).  A dinâmica envolve o desenvolvimento de uma nova linguagem e conceitos opacos, mas que tentam iludir fazendo parecer a inovação mais credível. Por exemplo, quase todas as moedas digitais têm um logotipo bonito impresso numa moeda brilhante, para parecerem moedas a sério. Na criação de bolhas há normalmente fenómenos de elevado endividamento para investir nos ativos especulativos, multiplicando artificialmente a procura e inflacionando o preço, criando lucros enormes, no papel, para aqueles que implementam as estratégias mais arriscadas com mais alavancagem e não vendem os seus ativos a tempo. Há normalmente também a criação de instrumentos financeiros complexos de futuros e derivados que aumentam a opacidade do sistema e possibilitam mais alavancagem. E, por fim, as inovações e invenções tornam-se cada vez mais mirabolantes, como por exemplo os non-fungible tokens que certificam obras de arte de valor e gosto duvidoso, as quais se transacionam por milhões. Mas na fase de pico da bolha, tudo parece possível! E, entretanto, apareceram agentes económicos que desempenham vários papéis no ecossistema, incluindo, neste caso, mineradores, corretoras e fundos de investimento. O problema principal são as relações nebulosas e conflitos de interesse entre estes operadores que, muitas vezes, pertencem ao mesmo grupo económico. A queda recente de uma das maiores corretoras cripto, a FTX, aconteceu em grande parte por esta emprestar o dinheiro dos seus clientes ao seu fundo de investimento Alameda Research que investia biliões em cripto-moedas realizando lucros fantásticos (até começar a realizar perdas avassaladoras com a queda da Bitcoin, afundando a corretora irmã e espalhando ondas de choque nos seus maiores clientes). Acrescente-se a isto as histórias de empreendedores visionários que parecem ter o toque de midas enquanto o processo de subida especulativa continua, e os exemplos fantásticos de muitas pessoas a fazer dinheiro facilmente. Tudo isto convence, não só o comum do cidadão, como também (pasme-se) alguns investidores institucionais que não aguentam a pressão e acham que têm de deter também o ativo especulativo pois já representa uma parte importante dos mercados financeiros e todo os outros estão a ganhar dinheiro com eles. O valor de mercado das cripto-moedas chegou a valer três triliões de dólares no seu pico (ou sejam três mil biliões de euros ao câmbio recente). Claro que muito pouco com valor económico positivo estava a ser criado neste processo e há sempre uma altura em que a maré começa a descer e aí se vê quem está a tomar banho nu (leia-se endividado e sem gestão de risco). E, quando a falência dos operadores revela o que realmente se estava a passar, aí se vê a completa falta de lógica económica, a assunção de riscos enormes, a fraude e conflito de interesses, falhas de auditoria e regulação, e mesmo a corrupção e os vícios misturados com o negócio. Aliás, algumas das histórias recentes sobre a gestão da FTX e do seu fundador parecem decalcados do filme “o Lobo de Wall Street” que descreve a onda especulativa do mercado de ações na década de 80 nos Estados Unidos e os excessos pessoais de alguns dos seus protagonistas. Mais perto de casa, a falta de gestão de risco, os conflitos de interesse e a falta de cuidado com os clientes da FTX, fazem lembrar o infeliz episódio da queda do BES.

E agora? Agora vai haver uma série de falências em cascata pois muitos operadores não deverão conseguir aguentar a queda abrupta dos ativos, combinada com a falência de alguns dos seus parceiros de negócios. Os protagonistas menos éticos irão aproveitar o estertor do ecossistema para tentar roubar e fugir. Os mais ingénuos irão assumir as culpas e pedir desculpa pelos excessos. E alguns, que até tinham uma gestão credível poderão ser apanhados nas ondas de choque e ir abaixo. Só os mais fortes, com gestão prudente e que desempenham um papel indispensável no ecossistema sobreviverão. Quando a poeira assentar, daqui a alguns meses, se irá começar a perceber a importância da Bitcoin como reserva de valor e hedge de inflação, o valor de conseguir autenticar de forma inviolável a origem de ativos e obras digitais, e a importância que um sistema financeiro distribuído poderá ter para a economia e sociedade. Mas é preciso que os ladrões e especuladores desapareçam para que os verdadeiros empreendedores e visionários possam fazer ouvir a sua voz e apresentar a sua proposta de valor.

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Filipe Santos, Dean da CATÓLICA-LISBON