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Crescemos a ouvir que falar demais é arriscado. “Não te armes em esperto”, “não desafies quem manda” – lições passadas de geração em geração, como se o silêncio fosse um escudo contra o mundo. Aprendemos que não dizer é mais seguro do que dizer mal, que quem se cala é visto como mais profissional, mais equilibrado, mais “corporativo”. Esta herança cultural, tão enraizada que quase parece instintiva, é talvez o que Carl Jung chamaria de Inconsciente Coletivo – um saber não dito, mas profundamente partilhado. Curiosamente (e felizmente), vemos hoje sinais de rutura, sobretudo nas gerações mais novas. A geração Z, em particular, recusa muitas vezes esta lógica do silêncio obediente, exigindo escuta, espaço e autenticidade. E é precisamente nesse contraste que se revela o quanto naturalizámos a ideia de que calar é melhor do que sentir – ou, pior ainda, do que ser.
No seio de muitos ambientes corporativos, a toxicidade prospera. E, como resultado, os colaboradores sentem a necessidade urgente de escapar. Como escapar fisicamente não é muitas vezes possível, afastarmo-nos psicologicamente torna-se um mecanismo de sobrevivência silencioso. Este fenómeno, a que eu gosto de chamar de evasão corporativa, levanta uma série de questões relevantes sobre o bem-estar dos colaboradores, a liderança, e a saúde geral das organizações.
A evasão corporativa não é mais do que a evasão mental e emocional dos indivíduos face ao seu local de trabalho. Embora estejam fisicamente presentes, o seu envolvimento e criatividade desaparecem. É uma epidemia silenciosa, frequentemente ignorada por líderes que confundem presença física com produtividade.
Para o filósofo Emmanuel Lévinas, a fuga não é um ato de cobardia, mas uma resposta a condições opressivas que ameaçam a autenticidade. No trabalho, essa fuga surge como exaustão emocional, desinteresse e perda de identidade – sintomas comuns em ambientes tóxicos.
Os estudos recentes mostram que ambientes tóxicos de trabalho geram níveis elevados de stress, burnout e exaustão emocional. Nesses contextos, os colaboradores sentem-se desvalorizados, isolados e sem apoio. A investigação aponta a exaustão emocional como mediador entre liderança tóxica e comportamentos desviantes, sublinhando o impacto sistémico destas dinâmicas.
Assim, a evasão corporativa não é apenas um problema individual. Quando um colaborador se desliga, afeta a dinâmica da equipa, a colaboração e o ambiente geral. Este efeito cascata pode levar à insatisfação generalizada e comprometer o sucesso organizacional.
A liderança é o cerne da questão. Os líderes preferem, muitas vezes, colaboradores “desligados” porque estes não se insurgem, não os colocam em causa, não contrapõem, e não desafiam o status quo. Mas esse conforto de curto prazo resulta em danos no longo prazo.
Os verdadeiros líderes reconhecem que é essencial promover segurança psicológica, incentivar uma comunicação aberta e valorizar perspetivas diversas para prevenir a evasão. Estes líderes criam ambientes onde os colaboradores se sentem ouvidos, respeitados e confiantes para contribuir de forma significativa.
Lévinas convida-nos a pensar para lá das soluções superficiais que são frequentemente aplicadas aos problemas organizacionais. A fuga, por ele descrita, é sobre a busca da autenticidade e significado. Isto ressoa com os desafios modernos: como criar ambientes que respeitem a individualidade, fomentem o envolvimento e inspirem propósito?
Podemos dizer que a vontade de fugir não vive apenas dentro das empresas – tornou-se um traço cultural. Basta que olhemos à nossa volta. A proliferação dos escape rooms nos últimos anos – jogos onde se simula a urgência de escapar de um espaço fechado – pode ser, de certo modo, um reflexo simbólico dessa pulsão coletiva. Curiosamente, são muitas vezes usados em dinâmicas de teambuilding, como se o próprio ato de fugir se institucionalizasse. Fora do universo lúdico, essa necessidade de libertação ganha contornos mais profundos: vemos uma geração Z que rejeita sem receio os moldes corporativos existentes, exigindo mais liberdade, flexibilidade e verdade no trabalho. Ao contrário de gerações anteriores, não tem medo de sair – ou de nunca entrar. Esta atitude desafia lideranças mais rígidas, mas também aponta para um caminho possível: um novo modelo de relação com o trabalho.
Já outras fugas que preenchem os jornais – como reclusos que escapam de prisões – pertencem a outra ordem. Mais do que fuga simbólica ou resistência silenciosa, são tentativas de evitar responsabilidade, e não de resgatar autenticidade. Confundir todas as fugas seria um erro. A evasão corporativa não é ausência de ética – é, muitas vezes, um grito silencioso de quem já não vê espaço para existir onde está.
O exemplo anterior serve para ilustrar, com alguma leveza, como a ideia de fuga atravessa vários níveis da vida contemporânea. Mas a verdadeira evasão de que falamos aqui é outra: não é da justiça ou de prisões físicas, mas de dinâmicas que nos esvaziam. A evasão corporativa pressupõe muito isso: um descolar de nós próprios. Mas essa evasão pode ser uma escolha – não apenas dos colaboradores, mas das organizações que criam ou toleram ambientes tóxicos. Criar espaços onde é possível estar – de corpo inteiro – pode ser o antídoto mais poderoso contra este desligamento silencioso que paira sobre tantos escritórios.
Duarte Silva, Development Manager Executive Education na CATÓLICA-LISBON